Suculento.
Era o termo que me vinha à memória naquele dia de verão. Entre a maresia que me rejuvenescia os poros, e o iodo dos dias de infância nas rochas, reconhecia o som guardado nos búzios, nas ondas que latiam em estalo ao projectarem-se no cimento do paredão. Eu, uma senhora, já longe dos bikinis de uma só peça, e das mamas iguais às do meu irmão mais novo, resplandecia na esplanada ostentando o ar de uma mulher de si. A aba larga do chapéu branco, criava à vista de outros, uma obsolescência nos óculos de sol que usava. Soubessem eles do astigmatismo que me segue desde os tempos dos cortes dos mexilhões nos pés, quando correr e saltar era mais forte que a dor, e eu sem óculos confundia os mexilhões com rochas escuras. Havia a prima Inácia, com a casa na avenida Brasil em frente ao mar. Os dois quartos do sótão eram os fortes ideais para as férias de verão. E aquela janela de água-furtada, o posto de vigia ideal para as investidas da preia-mar onde eu, caçadora de estrelas, galgava as muralhas e corria sem medo na direcção do inimigo. Carregava os baldes e enchia-os de água, sabendo à partida que seriam local de residência das estrelas que lentas não me conseguiam escapar.
Hoje, o bikini delineava uma silhueta firme e cuidada, onde me revia nos sucos verdes e achava que a desintoxicação me tonificaria os glúteos. Sempre achei um disparate esta história da desintoxicação excessiva. Há anos que a sigo e parece que permanecerá para sempre. Por esse motivo, quando pego em mais um copo inevitavelmente me ocorre perguntar o que poderá ainda haver para desintoxicar. No entanto, o suco verde sobre o bikini branco e a aba do chapéu, faz-me sentir um glamour que dificilmente encontraria num refrigerante.
A tia Inácia tinha um jardim zen interior de cactos e suculentas à porta da casa. Em vez de relva, a areia estendia-se com curvas desenhadas por ancinhos, numa poesia de fazer inveja aos mais esplendorosos pôres-do-sol. Nas férias grandes, havia alturas em que não se distinguia entre a areia zen do jardim e a da praia. Havia sempre uma razão qualquer para passar por ali despreocupadamente e num jeito de Jardel ver a areia elevar-se acima da minha cabeça. A tia, porém, pareceu nunca se preocupar com o desarranjo do seu jardim. Todos os dias, metódicamente, refinava-o, redecorava-o, lembrando a impermanência da vida e a significância de nela permanecer bela. Ao chegarmos a casa, depois de mais um escaldão nas costas e uns golpes nos pés, tínhamos sempre um suco de laranja, feito directamente na casca, donde se tirava apenas a tampinha como nós lhe chamávamos, para colocar uma palhinha cortada a meio para que se segurasse naquele copo original. Chegar a casa da Tia Inácia era tão bom como chegar à praia, ou tão bom como regressar à escola no primeiro dia. Era tão bom como aquele colo de mãe depois de uma queda bruta da bicicleta sem travões, quando nos fins de tarde passeávamos pelos jardins da Foz entre primos e irmãos.
Faz longos anos que aquela casa foi vendida em leilão, depois da sua morte misteriosa num mosteiro no Tibete. Desde aí, mantenho a tradição de pelo menos uma semana de férias ser passada em frente ao molhe. Agora, sem estrelas do mar nem baldes onde as pôr. Sem primos e irmãos nem corpos despreocupadamente ensanguentados entre cracas e navalheiras.
Passo os olhos no horizonte e vejo as crianças a brincar e os pais preocupados à sua volta. A vida sobre as rochas não é a mesma hoje em dia.
Lentamente, bebo o suco verde e quero que o tempo seja lento, quase parado. Quero que os meus olhos se fechem e estejam nos dias de sol da Tia Inácia. Quero pontapear o jardim e o mar e vê-los subir mais alto que o céu.
Respiro fundo.
Bebo lento.
O Suco. Bem lento.
Verde-mar. Lento.
Suco... Lento...
Que os dias deviam passar à velocidade de um gole em seco.
Luzia Peixoto
Fevereiro 2021
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