Tenho que te dizer isto…
Somos muito mais, sabes?
Maiores que o corpo
E os pés que o sustentam.
Podia ser eu e tu e nós, na vida
E fazê-la vivendo sem medo
Mas com receio
Podíamos ser passageiros
Num mesmo comboio
Um mesmo destino
Sairmos num mesmo apeadeiro
ou estação principal
E os olhares não se cruzam
As palavras não se trocam
Corações não se tocam…
Podias viver na porta em frente
E os turnos fazerem-nos
imperfeitos vizinhos
Perfeitos desconhecidos
Trocando a correspondência enganada
Do esquerdo para o direito
De um carteiro desatento às vidas
Podíamos abrir os olhos
Todos os dias
E sermos levados lado a lado no trânsito
Sentidos contrários
Numa fila quieta e abstracta
Desencontrados em vermelhos desfasados
tenho que te dizer isto, sabes?
A vida
Não tem relação com trânsito
Escadas comuns num qualquer condomínio
Nem viagens férreas em linhas de tempo
Somos maiores que o corpo!
Mãos dadas que não se tocam
Olhares fixos, que não se cruzam
Caminhantes lado a lado,
em estradas invisíveis
Une-nos o infinito
E perdemo-nos nele
E rimo-nos quando
Em qualquer cruzamento de galáxias
Nos reconhecemos
Irmãos sem progénese
Amigos sem história
Deuses sem reino
Reis sem castelos
Somos maiores que o corpo
E sabes?
Somos tão ínfimas partículas
Da mesma seiva estelar
Que ficamos indiferentes
Aos desencontros mundanos
De vidas intermitentes
No fundo
Sabemos
Que as mãos,
mesmo que não se toquem
Estão sempre entrelaçadas.
Luz Peixoto
Julho 2021
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