Eu, perdido
Depois de 25 anos, depois de esmiuçar a vida e saltar de prazer em prazer nela.
Depois de chorar as dores dos corações despedaçados. Depois de sentir amor ou
paixão ou tesão pelas mulheres todas que conheço. Sim, porque todas são
maravilhosas. Depois de tudo isso, disfarçada, de olhos azuis, cabelos lisos e
sorriso selvagem, apaixonei-me sem retorno pela Liberdade.
Vivi com ela as maiores e mais
intensas aventuras. Corri nu pela floresta, bebi água dos ribeiros por baixo
das mais arrojadas cascatas. Eu de boca aberta, ela ao meu lado, seios rijos e
desnudados, molhados e tensos, boca aberta e olhar no céu. E a chuva torrencial
que nos caía em cima e nos amachucava a pele.
Comi gelados no inverno e bebi chá
quente no verão. Passeei de mãos dadas, descalço, no asfalto da avenida central
e fugimos da polícia quando fumamos aquele charro mesmo em frente à esquadra.
Apaixonei-me por ela porque tinha que ser. Porque era óbvio e evidente que a
Liberdade sabia, exactamente o que me faltava. Eu, que até ali era um
desconsolado rapaz de visão toldada e pensamentos vagos. Eu que até ali era um
pedinte de afectos e carências e às vezes até de respostas às perguntas que nem
sequer conseguia proferir porque, de algum modo, não conseguia conceber. Eu
que, em dias de tempestade me fechava em casa e quando não podia, resmungava o
dia todo porque imagine-se, chovia!
Eu que bebia para esquecer aquilo de
que não tenho memória. Eu que me queixava da minha mãe que trabalhava e pouca
atenção me dava, mesmo nunca tendo faltado a uma audição, apresentação, nem
sequer ao dia em que me formei mestre. Eu que sempre desprezei o sentimento. E,
de repente, uma mão que me agarra, um salto no escuro, a adrenalina de fazer o
que nunca ousara. Uns olhos azuis que me fitam e me deixam sem jeito de tamanha
força que emanam.
Não sei se foi um sonho. Ainda hoje
não sei. Vívido sim, real sim, mas talvez um sonho. Apaixonei-me loucamente,
intensamente e de tão intensamente amar a Liberdade tornei-me prisioneiro dela.
A Liberdade não queria prisioneiros, ela repudiava apego, ela voava sem gaiola.
Eu, queria ao princípio voar com ela. Mas ela queria sempre voar mais longe e
mais longe e eu, aos poucos quis pôr-lhe uma trela. Ela, roía as trelas e fugia
mais longe. Eu desesperado porque a queria comigo sempre ao meu lado, tornei-me
gaiola. Ela, fugiu uma e outra vez e eu tornei uma e outra vez a gaiola
reforçada. Aos poucos, a prisão era indestrutível e eu feliz porque tinha a
Liberdade para mim.
Aos poucos a Liberdade definhou.
Deixei de correr à chuva, de voar
mais alto de estender o nariz ao último raio de sol e ela, aninhada, muda,
silenciada. Eu, desesperado. O que poderia estar a correr mal? O que me
escondia ela? Porque não me amava? Deixou de sorrir, falar, olhar-me. Os seus
olhos azuis tornaram-se cinzentos, a sua pele sem brilho e eu cada vez mais
desesperado. Tentava acordá-la daquele sono profundo em que entrara,
chocando-a, abalando-a. O álcool e as drogas entorpeciam-me e eu tentava-a com
elas mas a Liberdade recusava o vício. Os berros e insultos faziam-me hipoteticamente
maior mas o silêncio era a sua forma de guerra. Não me obedecia… Não me
respondia… Não me olhava… Não se compadecia…
Um dia, ela, doente, abatida, e eu,
doente, abatido. Em pranto. À frente dela. Ela, compassiva, passa-me a mão pelo
rosto. Segura-me as lágrimas. Segura-me as duas mãos. Os seus olhos cinzentos
dilatam as pupilas. Os seus lábios secos estalam às primeiras palavras
proferidas.
Disse-me, que eu não sabia ser
livre. Disse-me, que eu era o prisioneiro da sua própria prisão. Ela, ficara
apenas pela liberdade de escolher libertar-me. Agora, tarde demais para mim e
não para ela, sairia de mansinho. Tal qual como tinha chegado.
A gaiola não teve força para o seu
sussurro. Cedeu em escombros por cima de mim. Apaixonei-me pela Liberdade e não
consegui vivê-la! Troquei-a pelo desespero da ganância. Fiz dela a sua
antítese. Fiz de mim, a sua condenação.
Apaixonei-me pela Liberdade e hoje,
longe dela, percebo que não a quero. Não a quero porque me desgoverna. Não a
quero porque me assoberba. Não a quero porque me deixa inseguro.
Fico inseguro na Liberdade.
Fico inseguro porque não seguro nada!
Não sei fluir sobre as coisas, a
vida, o amor. Não sei fluir, ponto.
Não sei ser um rio que abre caminhos
novos nem o vento que rodopia sem rumo. Não sei beijar sem querer para mim nem
sei amar sem sentimento de pertença.
Casei com a Constância e estou
feliz.
Não sei o que é caminhar descalço,
não sei dormir em cima de uma árvore, nem viajar a meio da noite durante 300
quilómetros à procura do ponto mais próximo da Lua cheia atravessando
fronteiras para chegar a finisterra.
Percebo que, fraco como sou, me faz
bem a rotina de uma vida banal. Gosto das coisas simples. Mas não demasiado
simples. Um banho numa cascata é demasiado simples. Estar nu num solstício é
demasiado simples. Eu quero antes a simplicidade de ser banal. Não quero risos
sinceros e gargalhadas profundas. Quero antes aquela seriedade digna de um
casal, a severidade digna de um homem, a reserva digna de um marido. Constância
não me acrescenta nada mas alimenta tudo o que eu já tenho na medida do acertado.
A Liberdade, deixou-me no abismo do
desconforto. Apaixonei-me por ela e quando a tive, ceguei-me. Agora, com a
visão recuperada, vejo-a passar da janela do quarto:
Ela, cabelos ao vento, vestes
largas, olhos azul luminoso, sorriso resplandescente. Eu, invejo-a na medida do
espaço imaginário que me habita e que nunca quererei como real. Chove lá fora e
ela caminha descalça, boca aberta a olhar o céu. Tento perceber os seus seios
nas vestes brancas e reconheço que a desejo ainda. Que esse desejo seja
platonicamente transmutado pela distância da janela e das gotas que nela caem
distorcendo ainda mais essa ilusão, anseio em pensamento.
Constância, espreita por cima do meu
ombro e vê a Liberdade passar lá em baixo. Sem medo, em silêncio sorri placidamente,
coloca os seus braços à minha volta e nesse instante sussurra-me ao ouvido - O
jantar está servido.
Pensei em beijá-la com a força e
entusiasmo com que a Liberdade me beijava mas, deixei a janela, e sentei-me à
mesa, como em qualquer outro anoitecer.
21 de junho, solstício de verão 2021
Luz