escrever é o meu teatro mudo

escrever é o meu teatro mudo
escrever é o meu teatro mudo | 24.08.2002

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021


Gelo sobre a língua

 

- Boa tarde amigo, o que vai ser?

- 1 escuto por favor!

- Aqui tem, está naquela mesa ali.

Indica o lugar onde a psicóloga se encontra sentada a folhear uma revista. 

Com o café na mão, Jorge ultrapassa a mesa onde está sentada uma senhora loira, uma outra onde um homem se vê atarefado entre papéis e esquiços, e logo ao lado daquela que aparenta ser uma mãe bastante nova com uma criança já de alguma idade, está Sofia a psicóloga de serviço no café Ceuta, numa iniciativa de saúde mental, onde qualquer cliente pode, em troca de "1 escuto", ter direito a 20 minutos de conversa com ela.

 

- Posso?

- Sim. Por favor.

- Obrigada

 

Pousa o café à sua frente.

 

- Canela? Açúcar?

- Obrigada Dr. Sofia. Simples. Prefiro.

 

Um silêncio toma conta do ambiente por alguns instantes. Jorge sente-se triste e quase recusou fazer a oficina ontem porque o Sporting perdeu. Era mau perdedor e acérrimo sportinguista. Dava-se mal na cidade do Porto, lugar onde vivia há já alguns anos, sempre que o Sporting perdia e era achincalhado pelos seus amigos portistas. No Norte, não há espaço para mouros nem traidores e ele sabia-o bem.

 

- O seu nome? 

- Jorge. 

 

Sofia escreve-o numa sebenta A5. Há muito se tinha deixado de blocos sofisticados pois de dia para dia, preenchia completamente os blocos com pensamentos dos seus pacientes itinerantes. Não havia carteira que aguentasse 30 blocos sofisticados mensalmente. Comprava as sebentas em embalagens de 20, através de um acordo que fez com a escola primária perto dali e onde dava também apoio psicológico às crianças. 

Jorge hesita antes de falar. Tenta quebrar a barreira do medo e lembra-se da dificuldade vivida pelos seus ancestrais. Todos sofriam do mesmo. Uma incapacidade de falar de si próprio que tinha levado ao suicídio de muitos. Ainda assim, os seus avós e pais tinham-se mostrado bem resilientes e era aí que se queria encontrar - ganhar resiliência relativamente ao mundo actual e acima de tudo, à sua posição nesse mundo. Mesmo antes de falar foi interrompido pelo súbito grito da criança ali ao lado. A mãe tentava acalmá-lo mas ele insistia em berrar que não queria sair da sua casa no Carvalhido pois era feliz com o seu jardim e a sua televisão nova. Estava a meio de Naruto e só queria voltar para casa. A mãe falava-lhe de ir limpar a aura às termas e o bem que lhes faria. 

       - Vá lá filho! Vamos os dois, só tu e eu! Numa aventura! 

O filho parecia sentir que não havia maior aventura que um balde de pipocas e a sua subscrição da Apple TV...

 

- Partia agora numa aventura. - disse - Iria para bem longe daqui. Talvez Madagáscar... Dizem que lá se dá muita importância aos ancestrais. Eu dou muita importância aos ancestrais. Talvez demais… Talvez necessite de ir lá para curar isso.

- De onde é Jorge? 

- Valpaços. Perto de Chaves. Mas vivo cá no Porto. 

- Sabe que viajar para Madagáscar é como viajar para a idade média... 

- Talvez… Talvez falte lá o acesso à saúde, educação, alimentação… Mas dizem que têm muita resiliência, lá, os habitantes. A supressão de benefícios traz resiliência não acha Sofia? 

 

Sofia não respondeu. Nesse dia estava com delay. Um atraso na percepção das vozes que lhe parecia fazer ouvir os discursos à sua frente com cerca de 10 minutos de atraso. Sentia-se cansada de facto. E facto era também que aqueles cafés seguidos de 20 em 20 minutos pareciam estar a dar cabo dela e das suas tensões.  

Jorge continuou:

 

    -Não precisa responder… Muitos na minha família se mataram. Há um quê de desconforto genético em relação à     vida... Em Madagáscar dizem que há outra compreensão da morte. Que morre o corpo mas o espírito permanece.     Gostava que o meu espírito não se perdesse… Talvez consiga resgatá-lo lá. Talvez consiga ser uma pessoa                 diferente. Sei que não consigo sentir aqui aquilo que sentiria lá. 

- É verdade que nós humanos nos moldamos ao sítio onde vivemos…

- Mas será isso sinónimo de felicidade doutora? Sou feliz no Porto. Mas na medida daquilo que as pessoas conhecem de mim…

 

O delay de Sofia começava agora a tornar-se insuportável. Precisava de sair dali urgentemente. Não tinha nada a ver com a consulta a Jorge, talvez fosse do café ou das tensões. Talvez do ar condicionado abafado naquele dia de inverno gélido. Sofia sentia-se impotente, desconfortável, estranha… Olhou o relógio. Dos 20 apenas 5 minutos tinham passado. Não iria aguentar… Subitamente, um raio de sol alinha-se com a sua face mesmo antes de se pôr. Ela, fecha os olhos em alívio. Gosta do que faz, mas o fim do dia para ela tem que ter poesia. 

     

- Sabe doutora, estou farto. 

 

Demorando uns segundos para retornar à consulta, abre os olhos e pergunta:

 

    - Farto de quê Jorge? Venha! Sente-se aqui, sim aqui! Perto de mim. Venha! Não tenha medo. Aqui mesmo! 

 

Sofia usa as suas mãos para posicionar Jorge bem de frente para o raio de sol alaranjado que trespassa a janela. A face dele ilumina-se em sépia forte. 

     

    - Feche os olhos. Sente? O Calor? Abra os olhos. Veja por este filtro colorido. Quantas vezes pára para olhar a         vida? Não a sua pequenina… mas... a Vida! Aquela que se torna bio-sistémica e da qual depende? 

 

Jorge sentiu o calor do sol na sua face. Ou talvez fosse o fluxo do ar condicionado do Ceuta que estava realmente forte nesse dia. Olhou à sua volta. O homem continuava a esboçar esquiços em folhas e a mulher loura, pintava de vermelho os seus lábios conseguindo observar-se, pela sua linguagem corporal, a insatisfação que vivia. Talvez relativa à dificuldade que sentia em perceber que aquele tom vermelho não ficava bem com o seu penteado e a cor dos olhos.

Para Jorge, era-lhe indiferente a cor do baton. Gostava de ver mulheres, ponto. Considerava o baton um adereço tal qual os atacadores dos seus sapatos. Tinha uma paranóia por atacadores. Tinha-os de todas as cores e feitios e encomendava pela internet modelos exclusivos de marcas de luxo que à maior parte dos humanos passam na perfeita ignorância. 

Sofia tinha já reparado nos seus atacadores listados de preto branco e verde. 

 

    - Tem razão Sofia. Saímos daqui? 

 

O escuto ainda só ia em 15 minutos mas Sofia sentia uma necessidade enorme de sair daquele lugar. Também ela de lábios carmim, pegou na sua bolsa a condizer, na mão de Jorge, e cruzou novamente as mesas em sentido contrário, deixando para trás a mãe e o filho, o homem dos esquiços e a senhora loira. 

 

    - Volto amanhã Alfredo - disse ela. 

 

Saíram de mãos dadas e Jorge deixou-se levar. Um pé na rua e são assaltados pelos primeiros flocos de neve em anos! A última vez que tinham visto nevar tinha sido em 2005, ainda eram crianças. Sofia pegou no seu smartphone e capturou aquele momento. Jorge perguntou-lhe: 

 

    - Vais enviar para a CM? Ouvi dizer que pagam 50 euros por cada notícia em primeira mão. 

 

Sofia riu-se. Não precisava de dinheiro! Adorava fotografar e isso bastava-lhe. Partilhou nas redes sociais e ficou espantada por saber que Débora, a sua amiga de Évora estava a viver exactamente o mesmo prazer pueril. Ambas se sentiam crianças naquele momento e relembraram-se de quando viviam lado a lado em Évora, e de saltarem o muro das suas casas para irem lanchar a casa da outra. Nevar em Évora era ainda mais estranho que nevar no Porto e Sofia estava extasiada.

Jorge, estava a olhar para o céu. De boca aberta e língua de fora, em plena Praça dos Leões. Assim, de língua de    fora, parecia-se muito com um daqueles felinos fontanários sendo que, a diferença, é que Jorge engolia a água em    vez de a jorrar. 

Sofia juntou-se a ele. Um smart passou por eles e apitou. Era Audrey a ex de Jorge. Ele, nem reparou. Sofia pegou novamente no smartphone e fotografou ambos de língua de fora. Depois, outra vez, fazendo ângulo para que atrás deles se vissem os leões gárgulas da fonte. Depois, uma última sozinha, numa aproximação aos seus olhos e ao seu estado de espírito. 

Nem todas as viagens são fotográficas. E nem todas as viagens são tão longe como para Madagáscar. Às vezes, as viagens mais importantes são como ir do café Ceuta à Praça dos Leões, e essas sim, devem ser registadas em fotografia. 

Aos poucos, e pela escassez de flocos de neve, ainda que caíssem continuamente, foram necessitando de se mover para os apanhar. Língua de fora, virados para o céu, brincavam agora atrás dos flocos como duas crianças que tentam apanhar bolas de sabão com a boca. Nessa busca, um floco cai precisamente entre eles. Era inevitável! Ambos precisariam de o apanhar! Inevitável também foi as suas línguas tocarem-se. Com as pontas da língua encostadas, o floco equilibrado entre elas, olharam-se e sorriram profundamente, e como se o jogo não pudesse parar, devoraram o floco e as suas línguas e bocas, sentido o gelo derreter-se, literalmente nos seus corpos. 

Jorge não sabe bem quanto tempo demorou aquele sorver gelado e fogoso mas apercebeu-se que algo tinha mudado e agora eram pingas grossas de chuva que caíam sobre os seus cabelos e corpos. Os corpos estavam molhados e ele não sabia bem se era apenas a sensação provocada por aquele beijo ou se realmente estavam debaixo de uma tempestade. 

A sua tristeza afinal teve uma razão de ser naquele dia. Talvez o seu apelo aos ancestrais tenha sido ouvido e à conta disso ele pudesse estar agora a dançar à chuva. 

Quando estamos felizes, por vezes dançamos à chuva. Jorge, normalmente não dançava à chuva por que se sentia mais vezes triste que feliz. Mas nesses dias em que a chuva estava dentro, gostava de se passear nela. Hoje, não era o caso. 

 

    - A minha casa é já ali. Queres vir? Preparo-te um chocolate quente.

 

Sofia disse que não. Estava ainda a sentir o delay… Era como se não pousasse os pés no chão há mais de 24 horas. Sentia-se numa escalada rumo ao abismo. Tinha medo. Desde o último acidente. Aquele em que se apaixonou loucamente por Diogo e numa escalada vertiginosa se sentiu estampar por completo no chão quando Diogo a trocou pela "simplicidade do Barroco", como ela gostava de dizer. 

Lembrou-se que ele estava lá no Ceuta, agarrado à sua nova amante, a arquitectura, e que provavelmente nem a teria visto sair dali de mãos dadas a outro Homem…

Diogo não a tinha visto. Estava demasiado embrenhado em descortinar a frase mestra da sua tese de mestrado. Como descrever o Barroco na igreja de Siza vieira? Ele, sente que a sua tese está mal. Não consegue dar-lhe rumo… Perde horas à volta dela e sente-se perdido também na imensidão do vazio de Siza, ainda que consiga perceber nessa simplicidade o Barroco despido. Mas como poderia ele demonstrá-lo? Sentado na mesa do Ceuta, em torno dos seus papéis, dava voltas e escrevinhava na tentativa de reconhecer uma frase, que lhe desse o sentido à escrita. 

Um barulho intermitente e irritante desfocou-o: era o seu computador, a avisar que as suas teclas estavam a ser pressionadas de forma constante. A mesa era pequena demais e Diogo teve que empilhar o Ipad em cima do computador fazendo com que as teclas emitissem assim o seu aviso. Desconcentrado, Diogo parou para pedir a Alfredo mais um café duplo. Tal como Sofia, Diogo abusava muito do café. Enquanto o mexia, com açúcar e um pau de canela, olhou para a mesa à sua frente e viu a mulher loira enquanto colocava novamente o baton, depois de o ter limpo dos lábios pela vigésima vez. Ao aperceber-se do dilema de beleza da mulher, sentiu-se divagar pelas curvas dos seus cabelos, dos seus lábios, e reconheceu nela o barroco através do ornamento e o Siza através da simplicidade. 

 

    - O belo está lá todo. O Barroco é o baton dos lábios das mulheres. O Siza, apenas desenhou os lábios. - Murmurou Diogo. 

 

Estava aqui a sua pedra de toque. Diogo sentiu-se vitorioso e inspirado. Bebeu o seu café duplo, e começou a escrever. 

 

Sofia era viciada em chocolate, e um chocolate quente era algo que normalmente não recusava. Lembrou-se dos seus bombons de gengibre em casa. Deu um beijo condescendente em Jorge e disse:

 

    - Não. Vou para casa. Agora. Obrigada! 

 

Jorge acenou com a cabeça molhada. O seu cabelo raro fazia com que as pingas ressoassem de forma diferente nele. Por vezes, quando caminhava à chuva, tentava criar melodias através do toque da chuva e da caixa de ressonância que se criava com o seu crânio. 

Tinha mentido a Sofia, a casa dele não era assim tão perto mas de metro poderia considerar-se que a medida de tempo encurtava as distâncias. 

Entrou no metro. Este estava cheio como em outro dia qualquer. Ele também estava. Sentia-se agora já mais vazio de angústia mas um pouco mais cheio de resiliência. Olhou à sua volta. Lembrando-se do conselho da psicóloga de olhar a Vida. Focou a sua atenção em quatro mulheres que aparentavam não fazer nada, a não ser viver dos apoios sociais, mas que barafustavam e ensinavam umas às outras como aldrabar a segurança social para obterem benefícios, aos quais provavelmente não tinham direito, de forma rápida. Jorge sentiu-se incomodado. Olhou em volta e reparou numa mulher sentada com um olhar furioso na direcção dessas quatro mulheres. Era Susana. Susana tinha andado com ele no Aurélia na altura do liceu. Nunca foram muito próximos mas Jorge achava-lhe piada porque ela era muito sensível mas ao mesmo tempo disparatada. Lembra-se que ela chamava ao porteiro "Sr. Escola” pois a coincidência de se chamar Aurélio confundia-a e não havia forma de a fazer chamar o senhor pelo nome. Na cabeça de Susana, era simples: Para que decorasse o nome do homem associava-o ao nome da escola. O problema era que na hora H, o único nome de que se lembrava era o nome comum e não os próprios. Ficava o Aurélio e a Aurélia sem nome e só sobrava a escola. Ao fim de um ano, já toda a gente tratava o porteiro por Sr. Escola graças a Susana. E Jorge sempre achou isso muito engraçado. Na cabeça dela, também era simples o julgamento sobre a atitude daquelas mulheres impostoras que circulavam no metro, se calhar à pala de um passe social. Estava piursa e Jorge conseguia lê-lo facilmente na sua expressão facial. 

O metro parou no Carolina Michaelis e Jorge saiu. Sentia agora o frio a enregelar-lhe o corpo molhado e apressou o passo até casa. Subiu as escadas do prédio, abriu a porta de sua casa e foi tirando peça após peça deixando um rasto de roupa molhada que terminava no chuveiro. Exagerou na água quente mas precisava de relaxar os músculos e o tesão que ainda sentia. Não era por Sofia. Era pela Vida! Sentia-se vivo e todos aqueles choques térmicos estavam a fazê-lo sentir-se resiliente. Sonhou em voltar a Valpaços. Lembrou-se que em Chaves costumava nevar. Precisava sentir novamente a neve. 

Saiu do banho e enquanto secava com a toalha a sua cabeça quase calva, pesquisou no google os locais com neve. Arganil. Pareceu-lhe bem. Tinha uma amiga, a Eva, lá perto na Lousã. Ligou-lhe. Ela não atendeu. Jorge deixou recado: 

 

    - Eva, estou a caminho daí. Levo saco cama. Não te preocupes com lençóis. 

 

Sabia que Eva o receberia. Era uma das suas melhores amigas e socorriam-se um ao outro sempre. 

Entrou no carro. 

O carro não pegava.

Insistiu. O chilrear do motor dava indícios que seria em vão. 

Ao fim de um minuto a carregar no acelerador, para optimizar a injecção, ouve-se um assobio e fumo que sai do motor. 

 

    - Não. Não vou desistir. Resiliência! 

 

Pega no seu telefone e liga a Audrey. 

 

    - Diz.

    - Empresta-me o teu smart. Só até amanhã. Devolvo-to às 9.

    - Para quê? Vais sair com essa vadia? Estás louco? Achas que agora te patrocino os teus engates?

    - O quê? Do que é que… Olha, esquece. Preciso mesmo que me emprestes o carro Audrey. Lembraste? Da               resiliência? Eu sei! Eu sei que falhei, sei que fui sempre um fraco e tiveste toda a razão para me deixar. Era               impossível acreditar que daria a volta por cima naquela altura mas, confia em mim. Agora sou capaz. Deixa-me       colocar este marco. Preciso de ir à Lousã. 

    - Vais ter com a Eva? 

    - Sim.

    - Já lá devias ter ido há muito tempo Jorge. Só ela para te aturar. Sabes onde estou. Espero meia hora. Deixas-me     em casa e depois podes ir.

    - Até já.

 

Durante a viagem desde o emprego à casa de Audrey o silêncio perdurou quase todo o caminho. Audrey vivia na Cordoaria. Subiram os Clérigos e passaram em frente aos Leões. Jorge esboçou um sorriso ao lembrar-se da sua aventura e sentiu um calor subir-lhe a coluna ao passar a memória pelo beijo a Sofia. Audrey fingiu que não viu, olhando os azulejos da igreja em frente. 

Parados no semáforo, Audrey pergunta:

 

- Quem é ela? 

- O quê? Ninguém! 

- Eu vi-te hoje...

- Ãh? Oh aquilo? Nada Audrey. Não foi nada…

 

Deixou-a à porta de casa. 

Audrey entrou cabisbaixa. Há muito tempo que sabia que o que houvera entre eles estava acabado, mas agora sentia Jorge mais forte, resiliente. De certa forma sabia que a sua fraqueza os mantinha mais próximos e percebeu assim o afastamento.

Subiu as escadas do seu prédio antigo agora restaurado. Era professora de arquitectura e tinha acabado de reabilitar vários prédios na zona de Cedofeita, aproveitando os apoios europeus e o frenesim de turismo que se instalou na cidade desde que o aeroporto começou a receber as companhias Low-cost. Entrou em casa, e pela primeira vez desde que se tinham separado há um ano e meio baixou a fotografia de ambos que mantinha à entrada de sua casa. Pegou no seu telefone e digitou um número que guardava num papel na gaveta de entrada. Nunca se tinha atrevido a colocá-lo no telefone. 

 

    - Estou… Diogo? Estou só a ligar porque… Vi aqui o teu número, que me mandaste com aquele bouquet e... Se         precisares de ajuda para a tua tese…

 

Jorge já estava novamente a sair de casa. Tinha consigo o saco cama e a escova de dentes, o cartão de crédito e uns snacks para a viagem. 

Entrou no carro e rumou a Arganil pela A29 via Aveiro para pagar um pouco menos de portagens. Ainda não tinha conseguido libertar-se daquela mentalidade de poupança que os pais lhe tinham incutido. Talvez fosse melhor assim pois os seus desvarios seriam mais e maiores caso não fosse travado por esse preceito ético.

Enquanto pensava sobre isso lembrou-se de que queria mudar e no último momento decidiu-se pela A1 deixando a saída para a A29 para trás. Sentia-se a vibrar com a mudança. Pensou em Sofia e na mulher dos lábios vermelhos e ainda naquela criança tão avessa à mudança, como ele próprio já tinha sido quando saiu de Valpaços rumo ao Porto. Era novo e quadrado nessa altura. Foi quadrado muito tempo. Agora olhava o lado simples da vida, sem ornamentos barrocos, dirigia o smart e olhava a paisagem. Não tinha jeito para fotografia, mas se tivesse fotografaria paisagem. Adorava o seu aspecto cénico e a curva do horizonte que o fazia olhar o céu. 

Parou na estação de serviço. Precisava de usar os sanitários e ainda pensou em usar uma garrafa como fazia na altura dos comandos na tropa quando partiam em missões de escalada. Mas não precisava. Estava a tentar desformatar-se de hábitos velhos e obsoletos. Estacionou junto ao restaurante. Depois da ida à casa de banho entrou para comprar uns crackers para o caminho. 

 

    - Jorge? 

 

Não podia acreditar, Sofia estava ali. Ali mesmo. Como?

 

    - Sofia? O que… 

    - Vou ter com a Débora. Apertaram-me as saudades. Preciso de Vida percebes? 

 

Jorge sorriu. 

 

    - Sim percebo. Vou atrás disso. Aliás, vou atrás da resiliência de precisar de Vida, percebes?

    - Sim. Percebo. 

    - Então… Voltamos a ver-nos? 

    - Claro! No Ceuta. Estou lá! Amanhã! Quer dizer, sempre. Não precisas de ir amanhã, tu… Vai quando quiseres,     estou lá sempre. 

    - Ok

    - Bem… Boa viagem.

    - Para ti também.

 

Sofia virou as costas mas Jorge estava diferente e resiliente. Antes que ela terminasse o seu giro agarrou-lhe um braço. Ela virou-se e ele beijou-a subitamente, sem pensar. Apenas sentindo... a Vida. 

Pegou no seu cartão das oficinas de escrita criativa e deu-lho. 

 

    - Se quiseres, um café… não no Ceuta… Ou um chocolate quente… Em minha casa…

    - Eu ligo. 

    - Ok.

 

A viagem seguiu em silêncio. Jorge desligou o rádio. Era demasiada informação. - Quantos dias se passaram desde hoje de manhã? - perguntava-se.

Sofia pôs a música nas alturas… Não queria pensar sobre a nova escalada em que se estava a meter. Ainda sentia as mazelas do acidente com Diogo … Resolveu ligar-lhe. 

 

    - Está a falar para o gabinete de arquitectura de Diogo e Audrey - ouviu de uma voz de mulher entre risinhos. 

    - Desliga isso! Oh raios! É a minha ex! Porra! Atendeste? Atendeste? 

 

Audrey tinha pousado o telemóvel sem o desligar e acariciava agora Diogo que se tinha esquecido totalmente da sua tese de mestrado ficando-se apenas pelo despir das curvas ornamentadas de Audrey entre gemidos. 

Sofia não ficou a ouvir. 

Desligou. 

A sua face não se expressava. A sua respiração estava ligeiramente mais rápida mas ela sabia controlar as suas emoções. Viveu-as milhares de vezes através dos casos que lhe passaram pelas mãos. Abriu os seus contactos de telefone, seleccionou Diogo e eliminou-o da sua lista. 

Assunto encerrado. 

Voltou a ligar o rádio, agora mais baixo. Já queria ouvir os seus pensamentos e analisou o dia com a visão objectiva de uma psicóloga. No assento ao seu lado, viu pousado o número de Jorge. Com um comando de voz adicionou-o aos seus contactos telefónicos. 

Procurou a foto que ambos tiraram e enviou-a para ele com a mensagem - “começamos um novo capítulo? Ou escrevemos um livro juntos?” 

 

Eva estava à porta. O seu abraço caloroso era irrecusável e Jorge aproveitava-o sempre ao máximo. 

Enquanto pegava no saco cama ouviu o som de mensagem e imediatamente consultou o seu telefone.

Com a mão a segurar o porta bagagens e o seu saco, usou a outra mão e digitou uma resposta enquanto esboçava um sorriso:

- “Já temos prefácio!”

 

    - Hmmm há raia na costa Sr. Jorge! 

    - Só vim ver a neve Eva!

    - Oh sério? Estás com azar, nevou do outro lado da montanha, não conseguimos ver a neve daqui. Mas conta lá,        quem é ela?

 

Iam falando enquanto entravam em casa. A porta fechou-se atrás deles. Lá dentro, a cozinha de Eva era sempre um lugar caloroso. O chocolate quente esperava Jorge. Ela sabia que era a bebida preferida dele. Eva era sempre a melhor anfitriã e gostava de ter tempo para preparar surpresas aos seus hóspedes. Desta vez, e como era costume com Jorge, não teve muito tempo mas ainda conseguiu ir à loja de impressões e estampar uma fotografia do seu amigo na caneca onde lhe serviu o chocolate quente. Inesperado mas expectável vindo de Eva, pensou Jorge. 

Depois de se instalar, Jorge saiu, rumo a Arganil. Ao contrario da Lousã, não tinha nenhuma ligação afectiva ou de qualquer tipo com Arganil. Mas estava a começar um novo capítulo e talvez por isso tivesse escolhido hoje, visitar aquele lugar. Ao passar para o outro lado da montanha observou a neve que cobria tudo à sua volta. Não se lembrava de paisagem semelhante… 

Subiu a um planalto, parou o carro e sentou-se numa pedra. À sua volta um manto alvo preenchia o momento. Aos poucos, a sua pele começou a receber a humidade que passava através das suas calças. Sentiu a neve em contacto com a pele. Lembrou-se que nesse mesmo dia já a tinha sentido na sua língua. Esse frio que o trespassava fê-lo sentir-se ele próprio um cristal de gelo, único, original. Lembrou-se do sentir de Álvaro de Campos e de como ele descreveria aquele momento:

 

    - Eu quero ser a neve de todas as maneiras! - disse em tom solene.

 

Extrapolou a frase de forma sentida: 

 

    - Eu quero ser a Vida, de todas as maneiras!

 

A resiliência tomara conta dele. 

 

 

 

 

 Luzia Peixoto in Oficinas de escrita TKNT - exercício de escuta activa - 20 janeiro 2020