escrever é o meu teatro mudo

escrever é o meu teatro mudo
escrever é o meu teatro mudo | 24.08.2002

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

 

 

 


 

 

(Da minha janela)

Havia entre eles uma cumplicidade amarga.
Caminhavam de mãos dadas apenas em dias cinzentos e olhavam-se várias vezes profundamente nos olhos, mas só durante a noite, num sequenciado acender e apagar de luzes da divisão onde habitavam a maior parte do tempo. Reconheciam-se nas pequenas coisas quando encontravam os pensamentos mesquinhos de um e de outro, na tampa da pasta de dentes aberta, ou na tampa da sanita por fechar. Nada neles aparentava romance. Da minha janela conseguia ver um relacionamento sombrio, que florescia apenas em momentos lúgubres. 
Era como um dia triste de inverno, que regozijava de prazer ao molhar torrencialmente as ruas, enquanto levava os guarda-chuvas pelo ar. 
O que os mantinha juntos há tantos anos? Não sei… 

(Dentro de portas) 
 
Em dias cinzentos, ele agarrava-lhe a mão com força, sabia que era difícil para ela essa claridade enevoada e difusa, que cobria as coisas de uma luz branca forte. Deixava-a tonta e desorientada. Ela, retribuía com um sorriso, e uma confiança que a deixava segura. Ao chegarem a casa, e devido à sua fotossensibilidade, ele criou um jogo, que lhe permitia adaptar-se e ao mesmo tempo trabalhar terapêuticamente sobre o seu problema. Com ela no centro da sala, ele apagava a luz e voltava a acendê-la, repetida e sequencialmente. Quando a luz se acendia, fitavam-se profundamente nos olhos fazendo essa tão necessária ginástica ocular que lhe permitia não perder totalmente a visão durante o dia. 
Conheciam-se tão bem que necessariamente deixavam a tampa da sanita e a pasta de dentes abertas, pois o branco de ambas dificultava a sua amada na sua tentativa de manter alguma independência. Ao fazê-lo, sorria. E ela ao ver os seus pequenos gestos, sentia-se acalentada pela sua constante presença. 
Tudo neles era romance. Dentro daquelas portas, era como um dia quente de primavera, onde a chuva rega abundantemente as plantas reconhecendo a beleza dos seus frutos, e o vento transporta as sementes para longe, para que o seu destino se cumpra. 
O que os mantinha juntos há tantos anos? O amor…

 
 
Texto: Luz Peixoto (instagram: luz.peixoto)
Photo: Egidio Santos (instagram:egidiosantosfoto)