escrever é o meu teatro mudo

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escrever é o meu teatro mudo | 24.08.2002

terça-feira, 12 de abril de 2022

Encontros

 

As pedras da lua têm traços de arco-iris e eu, sentada na beira da cama, vejo um céu tenebroso e rasgos de estrelas. Tenho perdidas as coisas nos bolsos, que de tão fundos se esquecem do caminho de volta. Ouço o eco, ao longe, de quem deixou cair um botão de rosa e esperava um obrigada, ou um beijo quente... Nada disso aconteceu.
O silêncio, fez-se ruídoso no coração de um homem morto por dentro. As mãos flácidas, desapegadas dos espinhos que lhe sangram os poros, e uma lágrima seca na curva do rosto… Uma mão sobre o seu ombro, e o silêncio compassivo de quem diz tudo, não verbalizando nada. A sua face, amarrotada nos lençóis - inerte, e ainda viva. Sem brilho, mas ainda viva.
Eu, na beira da cama, de joelhos, prostrada, sou extensão de um corpo sem vida por dentro e seguro-o numa transfusão de sentir para que não me morra ali, deitado, porque até os amantes devem morrer de pé.

Ergo os olhos ao céu num rasgo de estrelas e forço o brilho no meu semblante para que se estenda e se entenda por quem desistiu de bater as asas. Eu, com brilho de arco-iris na pele à meia luz, e ele, derrotado em silêncio.

Nunca o silêncio foi tão crucial…
 
Olhava as pedras da lua e o céu tenebroso e no silêncio importante que nos abraçava, eu de pé, sentada, e ele deitado, caído - e a janela aberta - e por momentos, num rasgo de egoísmo, eu a compassiva esqueci que ali estava e deveria ser seu reflexo e o coração abriu-se e o peito expandiu-se para lá de mim.

O silêncio era mais vasto que nós dois e ecoava por toda a esfera celeste. O ar teimava em fazer bater as portadas e o vento assobiou nos meus cabelos mas não nos dele, que eram curtos e estavam escondidos da janela… A luz de um arco-iris inundava-me o rosto e os assobios nos caracóis delineavam-no... Um suspiro selvagem saiu de mim quebrando o silêncio. Julgo, tê-lo ouvido do outro lado do mundo. Juro tê-lo ouvido a serpentear na via láctea e regressar à janela do quarto.

Quebrado o silêncio, o que nos restava?

Virei o rosto, e ele, ainda deitado, de olhos fixos em mim, e não num horizonte distante. E ele, menos morto por dentro e mais vivo por fora. E eu, surpresa pela doçura de um recém-nascido, velho mártir do amor. Vou ao fundo dos bolsos e encontro de volta as palavras esquecidas. Ele, levanta-se e a lágrima seca no rosto escorre agora em jorro desenfreado. Um abraço, e o sangue que seca e se recolhe dentro dos poros.
A noite vai alta e a transfusão de vida fez efeito porque o corpo por dentro morre a cada pequena perda, mas ressuscita a cada novo encontro.
Eu ali, como sempre estive e ele, finalmente ali, como sempre esteve sem o saber. As mãos antes flácidas, pegaram nas minhas e e os pés moveram-se em uníssono - o rio era já ali ao lado e o amor tem que ser romântico.
E... num instante, eu e ele - há tanto tempo, e hoje, pela primeira vez.
Porque as epifanias acontecem sabem?
E ainda bem!
Ainda bem.

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Texto: Encontros por Luz Peixoto
Photo: @jammggi - Alberto de Magalhães

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