escrever é o meu teatro mudo

escrever é o meu teatro mudo
escrever é o meu teatro mudo | 24.08.2002

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Fui esquecendo o azul ao ver a lua

 

Texto traduzido para espanhol e publicado em ulises.online (ulises - revista de viajes interiores)



Era Lua cheia. Sabia-o porque tinha escolhido especialmente aquele dia. Diziam, nos livros de biodinâmica, que a Lua, mediante a sua fase, influência a fisiologia no que diz respeito à toma de substâncias.  

Era na lua cheia que se potenciava a toma de medicamentos e acreditei por ilação, que a toma de qualquer substância seria potenciada. 

Estava eu ali, quarenta e cinco minutos após a ingestão de um microponto, expectante, sentado à beira dessa experiência… 

Podia dizer-me tanto como todas as outras que vivi mas por qualquer motivo dizia-me mais… Não é todos os dias que reconheço os teoremas quânticos nas fontes de luz que observo… Nem é todos os dias que um ouvido aguçado prescruta o ar e me enrijece os tímpanos fazendo-os soar em melodias solenes. 

Tomei talvez, uma dose alta demais… 

Talvez perca agora o meu chão e não me reconheça nessa subida vertiginosa onde me espalho por completo,

como se o chão fosse no céu e as nuvens, os recados que os homens trazem aos anjos. 

Sinto-me a arfar… ah ah ah…

    - são síncopes descompassadas que me suam as fontes…

Olho a cidade do cimo da colina.

Sei que aquela colina sempre foi palco de momentos nobres:

Lembro-me do primeiro beijo enquanto olhava em  abraço a estrelas 

e dos neons que cortavam a silhueta citadina quando à fogueira fumamos o primeiro charro

Lembro-me, de salvar o Pedro da sua tentativa patética de suicídio quando Jessica, o seu primeiro e ridículo grande amor se mudou para o Oeste.

Agora, afastava-me do miradouro ao sentir a dose profunda que me envenenava e criava dimensões de real até aí despercebidas. 

O coração estava ainda mais forte e a respiração suada tornava-se ensurdecedora aos meus ouvidos sensíveis. 

                          - Eu era agora um GIGANTE sensorial! -


As tonturas e os pensamentos vertiginosos fizeram-me aos poucos e com cautela colocar primeiro uma mão sobre a pedra à minha direita, um joelho no chão, a outra mão… Senti o impacto do cóccix. Foi forte. Sinto que foi demasiado forte pela sonoridade criada e a onda de impacto gerada. No entanto, não senti nada… Nada… O meu corpo... olhei-o com atenção e vi-o desprender-se, como se a vida não dependesse daquele invólucro. 

    - Acalma-te Joel… Acalma-te…-

Observava o meu corpo a deitar-se na relva orvalhada. Percebi que várias horas teriam passado pela quantidade de orvalho já acumulada nas esguias folhas lanceoladas. Sabia-as lá ao afagá-las com as mãos. Contudo, não as sentia… Era tudo uma questão de raciocínio lógico, que não reconhecia como meu… 

Por momentos, senti-me morrer… 

Observava-me agora, ali, deitado, a arfar, as pupilas dilatadas, um ar de pânico abstracto estampado no meu rosto e as gotas de suor que se confundiam com as gotas de orvalho…

    - Acalma-te Joel! -

O coração disparava e conseguia ouvir o fluxo de sangue que me subia pela carótida. Conseguia vê-la pulsar. Os meus olhos fixaram-se no azul profundo da noite. A visão aumentada e exacerbada pela dose excessiva de LSD abria túneis quânticos que me aproximavam da linguagem de Saturno. 

     - Como assim? É tão longe Saturno!... -

Ouvia ainda as vozes emaranhadas dos pensamentos dos moradores da cidade. Logo abaixo da colina…

Sabia-os bem… Alguns dormiam e conseguia perceber os seus sonhos, outros, faziam amor e conseguia ouvir-lhes com clareza os gemidos do prazer de um corpo a fundir-se com o outro. 

Também eu me fundia… Era eu naquele momento a cópula com o mundo. Todo o Universo se servia de mim agora em orgasmo intenso. Subitamente, aquele azul profundo fez-me sentir a pequena morte em simultâneo com o casal por cima do restaurante chinês no cruzamento da 5ª com a 27ª.  

Ouvi o nosso coração suspirar de alívio. Senti o suor retrair-se para dentro dos poros e a boca a quebrar a patine criada pela saliva seca. O azul profundo abraçava-me. Era eu agora, umbilicalmente ligado ao centro galático. Tudo era um momento encasulado em paz profunda…. A visão, aos poucos criava nitidez nas manchas borratadas das estrelas.  Reconheci a Cassiopeia, Andromeda, as três Marias… Pelo canto da visão periférica a luz chamava-me, forte, intensa... Virei, ainda sem consentimento, a pesada cabeça que supostamente teria. Resplandescente, a lua brilhava. Via perfeitamente cada uma das suas crateras e reconhecia o som das ondas eletromagnéticas que percorriam a sua superfície como uma música eletrónica futurista, que enviava uma mensagem muito clara para mim. "És tu Joel. És tu aqui e nesse sonho profundo.” 

A epifania de um contacto directo com a fonte fez-me ser beatitude em forma de sorriso. A Lua, poupou-me à morte naquele momento. De olhar atento na textura das suas crateras, o seu alvor cálido aos poucos aquietou a intensa viagem enteogénica que experienciava. Na fluidez do seu esplendor, fui esquecendo o Joel, e com ele o azul. 

Num delírio fora do tempo senti-me não ser, por toda a  eternidade, reconhecendo-a num pequeníssimo momento.

A luz da Lua começou a cegar-me. Já não conseguia vê-la ofuscado pela intensidade visual sobre os meus olhos. Os sons, até aí límpidos e lúcidos transformaram-se no burburinho agitado das viagens percorridas pelos transportes públicos sobre os viadutos e as buzinas apressadas dos serviços expresso. A cidade amanhecia assim. - Quantas horas teriam passado? -

O corpo, sentia-o agora desconfortável, enregelado, molhado... O prazer antes sentido pelo toque nos vértices da grama não passavam agora de uma memória irreproduzível. Doía-me o cóccix. Ainda deitado, com as mãos em riste tapando a luz intensa, percebi que o azul se tinha tornado ténue, e que a aurora deveria ter sido há já bastante tempo pela posição vertical do sol. Com esforço, levantei-me. A cidade parecia-me igual, no entanto, eu estava diferente. Caminhei colina abaixo e reparei nas marcas deixadas nas árvores pelos vários casais que ali passaram. Na vigésima primeira, a contar do ponto mais alto da colina, estava eu cravado entre dois pedaços de casca grossa. Nesse dia de solstício, tinha decidido que a vida pertencer-me-ia sempre por completo. 

Cambaleante e com dores desci o caminho de terra. A lua permanecia no centro das minhas pupilas mas era o sol que me aquecia a nuca. O azul, ficou esquecido, latente, numa parte nunca antes explorada de mim. - Seria eu ainda? -

     - Joel... Sou Joel! Mas sou mais agora!


 A vida, pertencia-me por completo. 

 

 

Luzia Peixoto



sexta-feira, 23 de julho de 2021


 Tenho que te dizer isto… 

Somos muito mais, sabes?
Maiores que o corpo 
E os pés que o sustentam.

Podia ser eu e tu e nós, na vida
E fazê-la vivendo sem medo
Mas com receio

Podíamos ser passageiros
Num mesmo comboio 
Um mesmo destino
Sairmos num mesmo apeadeiro 
ou estação principal
E os olhares não se cruzam
As palavras não se trocam
Corações não se tocam…

Podias viver na porta em frente
E os turnos fazerem-nos 
imperfeitos vizinhos
Perfeitos desconhecidos
Trocando a correspondência enganada 
Do esquerdo para o direito
De um carteiro desatento às vidas

Podíamos abrir os olhos
Todos os dias
E sermos levados lado a lado no trânsito
Sentidos contrários
Numa fila quieta e abstracta
Desencontrados em vermelhos desfasados

tenho que te dizer isto, sabes? 
A vida
Não tem relação com trânsito
Escadas comuns num qualquer condomínio
Nem viagens férreas em linhas de tempo

Somos maiores que o corpo!
Mãos dadas que não se tocam
Olhares fixos, que não se cruzam
Caminhantes lado a lado, 
em estradas invisíveis
Une-nos o infinito
E perdemo-nos nele 
E rimo-nos quando 
Em qualquer cruzamento de galáxias 
Nos reconhecemos

Irmãos sem progénese
Amigos sem história
Deuses sem reino
Reis sem castelos

Somos maiores que o corpo 
E sabes? 
Somos tão ínfimas partículas
Da mesma seiva estelar
Que ficamos indiferentes
Aos desencontros mundanos 
De vidas intermitentes

No fundo
Sabemos
Que as mãos, 
mesmo que não se toquem
Estão sempre entrelaçadas.
 
Luz Peixoto
Julho 2021