escrever é o meu teatro mudo

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escrever é o meu teatro mudo | 24.08.2002

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Crónicas da humanidade




Hoje

Há dias assim.
Em que as lágrimas insistem em bater à porta dos olhos. 
Talvez devesse ser menos sensível. Talvez até mais fria e cirúrgica, como uma enfermeira em campo de batalha, com coração empedernido não pela falta de sentimento mas pelo excesso de crueldade. Há uma imunidade natural que se conhece a quem vive nas trincheiras. Mas, talvez porque o sangue não nos escorre nos dedos, desconhecemos que todos vivemos nelas. Mas eu, eu sofro de imunodeficiência sentimental.  Meu sistema não se endurece com o passar dos anos e o sangue invisível que me escorre dos dedos, do peito, e que se entranha até aos ossos, faz-me sentir a vulnerabilidade de um ataque que não me chega, um ataque que me inquieta, um ataque que é meu, porque é de todos. 

Índia 

Em 2019, estive na India. Amo a India! Pertenço lá! Sou seguidora das suas tradições e ensinamentos e no entanto, sei que não há lugar nenhum tão discrepante. Lá a pureza e violência caminham na mesma rua, lado a lado, lá a pobreza e ostentação são siamesas, lá a dor dói mais na falta de um lar, de uma família, de uma mãe numa criança de três anos que caminha sozinha, perdida na rua e senta para chorar em desespero. A fome, é o fado dessa criança e ela a saciará um dia após o outro, sem pensar no amanhã. Olha aquele momento e o seu estômago vazio, a dor que lhe provoca, a falta de um colo, a falta de um porto, a falta de dinheiro. Lá as crianças, algumas, milhões delas, crescem nas ruas e trabalham aos seis. E eu vi-as com pilhas de tijolos maiores do que elas a construir as estradas que os tornarão mais “civilizados”, bem como as mães, de embriões no ventre, a carregar o seu peso em areia, ao lado de escarpas íngremes e inseguras nos Himalayas, sujeitas à morte, sem medo, ao qual são imunes pelo excesso de vezes que já lhes bateu à porta. 

Índia - o outro lado

Calcutá

Nesse lugar - a Índia- há homens e mulheres que todos os dias se levantam as 5 da manhã para arrumarem as suas casas e depois, em missão de vida, em missão constante, fazem trabalho de reencontro de famílias perdidas, dia e noite, mês após mês, numa luta constante contra o karma, contra a inevitabilidade de um país lotado de gente sem recursos. Estive em casa de um deste homens. Um homem bem falante, inteligente e extremamente educado. Uma perspicácia fora do comum, e um coração de ouro. Ele é uma das muitas caras do outro lado da Índia. Há um lado na Índia que é exemplar. No meio do lodo, floresce o melhor da humanidade. 
É isso que guardo no coração. 
Estou para encontrar um povo que seja mais resiliente, mais humano, cooperativo e altruísta. 
Acredito que não exista… 

Baba

No cimo dos Himalayas, numa aldeia remota, conheci um Mestre. Homem sábio, de poucas palavras, foge do protagonismo e acredita que as palavras que entoa são proferidas por Deus, assim como todos os actos dos Homens. Quando lá ficamos, no seu humilde ashram, tivemos a oportunidade de observar as suas práticas diárias, de reconhecer como cuidava de crianças desfavorecidas e como elas cresciam, felizes, apesar de órfãs. Os meus filhos, que foram comigo, privaram com elas, num inglês que lhes era muito tosco, num local onde os professores escasseiam mas as vontades são grandes. Daquelas meninas, não havia uma que não tivesse vontade de prosseguir os estudos académicos. Muitas delas, não teriam essa oportunidade, pois chegada a idade de casar, seriam moeda de troca dos seus pais empobrecidos. Ali, o brilho nos olhos não desvanece. Lembro-me bem da minha filha sentir a dor da sua própria abundância ao rever-se nelas. 

Os ricos

No sopé dos Himalayas, estivemos em contacto com uma ordem de Sanyasis - monges renunciantes. Renunciaram à vida em família, mas não à obra social. Ali, uma escola, um hospital dedicado a um problema transversal ao país - as doenças oculares. E uma equipa holística de médicos, cirurgiões, médicos ayurvédicos, homeopatas, naturopatas, que de forma cooperativa e integrada, recebem a troco de nada pessoas desfavorecidas, e as cuidam. 
Viajamos no mesmo autocarro que um grupo de aldeões de várias aldeias remotas dos Himalayas. Este autocarro, foi doado, assim como todo o hospital, e a sua construção. Há gente rica na India, riquíssima, com um coração de ouro. Há gente que constrói com um donativo único, um hospital, uma escola, um orfanato, um templo. Há gente na India, como não há em Portugal. Que sabe que o dinheiro é feito para circular, e para criar união. Há gente que entende que não se pode ser feliz com a miséria do outro lado da nossa porta. 

O autocarro

Esse autocarro percorreu as aldeias, e recolheu gentes de todas as idades, com deficiências oculares e trouxe-as até ao sopé dos Himalayas, para se tratarem. Enquanto lá estiveram, depois de operações bem sucedidas, ainda em convalescença, esse autocarro levou-os a ver lugares que nem em sonhos estas pessoas sonhariam visitar. Mais do que médicos, são anfitrões, de gente sem eira nem beira, num país de contrastes, onde se destaca o amor ao próximo. Fizemos a viagem de regresso, e vimos os seus sorrisos de agradecimento, à medida que iam sendo deixados novamente à porta de casa. Na India, não se agradece muito a ajuda. Ajudar faz parte, como faz parte lavar o corpo ou orar.  

A lição

Na india, vivemos a dor e a alegria com a intensidade de um nascimento, a cada momento. E choramos, porque a vida lhes é dura como nunca nos foi. E choramos, porque a vida os ensina a ser melhores, do que alguma vez seremos. 


Os afegãos

E hoje, a minha filha, liga-me. Do conforto da sua vida de escola, onde estuda música, privilegiada talvez, porque ainda a música é só para alguns. Privilegiada também porque nós pais lutamos lado a lado pelos seus sonhos. E porque, por mais que nos custe, por mais que nos tirem a pele, faremos o que estiver ao nosso alcance para que sigam os seus sonhos. E do alto do seu privilégio, relembra-me a atrocidade acontecida há um ano atrás, onde uma escola de música no Afeganistão, foi destruída pelos recém empossados talibãs. 

Os Talibãs e a morte da cultura

Há um ano, reviraram-se-me as entranhas ao ver pianos e instrumentos tradicionais, como as minhas tão amadas tablas, destruídos sem piedade, numa escola referência internacional. Um governo, impiedoso e desumano, quis destruir a música. Começou pela escola onde eles se formam. Destruiu uma orquestra feminina. Perseguiu localizou e assassinou brutalmente um cantor. Só porque sim. 
A arte neste país, já não é permitida. 
As razões? 
Não se permite a arte porque a arte é expressão. E quem se expressa, é livre. 
Neste país, espelho vincado de um mundo, não se querem pessoas livres…


Os 10 músicos que são milhões 

A minha filha, liga-me hoje e diz-me que chegaram à sua turma de conservatório 10 alunos afegãos. Estão sozinhos, e vieram para Portugal para lutar pelos seus sonhos: serem músicos! 
Tal como os indianos, os afegãos, segundo ela, são resilientes, divertidos, felizes à sua maneira. 
Hoje, numa inversão inesperada, a minha pequena aprendiz de flautista, recebe a bola de um amigo afegão. Ela a dizer que não era suficientemente boa a fazer aquilo, sentia-se incapaz. Ele, pareceu aos seu olhos mais competente, e como tal, ela passa-lhe a bola, na esperança de marcar ponto. Ele, o menino que vem de um país corrompido pela violação de todos os direitos humanos, devolve-lhe a bola e com a resiliência esperada de quem cresceu na escola injusta da vida, diz-lhe: "tens que tentar até conseguires.” 

O mundo a sério

Neste mundo a sério, não contam os pontos. A competição, não existe num mundo real. 
Neste mundo, existe a humildade e o dar a mão ao mais fraco. Seja ele um refugiado de guerra, ou uma menina, que não sabe jogar.
Enquanto a ouço, esforço-me por não deixar derramar o choro num rio que me banhe. 
Respondo-lhe que ela já viveu isso, três anos antes, com as meninas da India. Essa força, esse desprender do ego, esse reconhecimento do "Crescer com Gente", essa resiliência de ser humano contra tudo e contra todos. 
Ela, vivencia-o hoje, afortunadamente pela segunda vez na sua vida. Só quem lá esteve sabe. Só quem lá vive muda… E nós, família portuguesa, somos afortunados. Este maya - esta ilusão descrita pelos indianos, às vezes, por breves instantes, torna-se para nós mais perceptível. Vivemos todos esta ilusão. Somos em cada instante o rico, com a possibilidade de doar, o menino perdido, nas ruas de Calcutá, o músico sem chão, com o seu mundo destruído. Somos também o que pune, o que viola, o que degrada, o que proíbe. A linha, é demasiado ténue no mundo real. O coração é o mesmo, nestas almas siamesas de dor e esperança, de amor e de ódio. De que lado nos colocamos? 

Não consigo ser imune! Eu aqui, do conforto da minha vida, e 10 meninos afegãos, sem família, lutam pelos seus sonhos. Eu que iludidamente penso que me esforço de forma sobre-humana para ajudar a minha filha a seguir os sonhos dela. 
Olho para os pais dessas crianças: A única forma que encontraram de os ajudar foi largar mão deles. Os pais, acorrentados a um chão demasiado duro e infértil, como árvores velhas num solo quebrado pela seca, libertam as suas sementes na esperança que voem para longe, e vivam e cresçam sem escassez. 

A lição

Digo à minha filha que esta lição veio ter com ela duas vezes. Talvez daqui se tire sumo. Talvez isto impacte a sua vida. Talvez um dia, ela seja como o homem de Calcutá que ajuda os perdidos, ou como o doador rico que constrói hospitais, ou tenha uma escola, quem sabe de música, no meio dos Himalayas ou de outro lugar remoto. Talvez nada disso aconteça, e ela seja só uma boa mulher, sabendo o que é o mundo real, e vivendo de acordo, com os princípios nobres, que hoje se perdem como as lágrimas e se evaporam sem criar rios. Talvez ela se forme, e possa deixar sementes nas mentes, nas páginas, nos ouvidos com a sua música. Porque a arte não se perde enquanto houver cabeças livres. Porque não se prende a criatividade, não se mata a vontade e cultiva-se, com a vida, a resiliência. Seja o que for minha filha, eu sou aquela mãe que te ensina a voar alto, mesmo que isso signifique deixar-te ir. Do meu coração, podes ter a garantia de que não se tornará empedernido. Não tenho imunidade sensorial ou emocional. Serei o teu forte, mas verás sempre as minhas lágrimas, porque não as escondo de ti! Ensino-te a viver porque é assim que somos. Vivos! E não zombies. E hoje, pequenina ainda que és, e grande como uma montanha que te tornas, sei-te capaz! Não temas o mundo real. Aprende com quem de lá vem: Os sorrisos, a cooperação, a resiliência, a vontade, a coragem! Aprendamos todos! Tentemos marcar pontos num campeonato mais humano, onde não interessa quem melhor lança a bola, mas sim ensinar todos a lançá-la. 

Portugal sensível

Desligo a chamada emocionada. Não quero que me vejam assim, mas também não me importa se me virem. As lágrimas não caem, com muito esforço meu. Lembro-me da notícia que partilhei há um ano e apresso-me a partilhá-la com a minha filha para que saiba o que lhes aconteceu. Enquanto pesquiso, descubro que após este incidente, o governo Português se ofereceu para receber este músicos e ser a nova sede desta escola afegã. Uma tentativa de preservar uma cultura que não é a nossa, e de doar a oportunidade a 273 jovens, para que sigam os seus sonhos, com dignidade, com segurança. Tive orgulho da sensibilidade Portuguesa. Estamos muito adormecidos hoje, mas somos viajantes atemporais. Na índia, ao contrário dos ingleses, somos acolhidos sem diferença, apesar da colonização. Soubemos, ao longo de séculos estar, em terras alheias, sem causar muito dano, e respeitando a cultura. Cometemos erros imensamente crassos no passado, mas fomos os primeiros a redimir-nos deles. Aceitamos a diversidade, e não estigmatizamos a diferença. Quando alguém precisa, também nos movemos. Somos como os indianos, pobres à nossa maneira. A única diferença é não termos ricos que doem hospitais inteiros. Diferencia-nos a competição versus a cooperação deles. A escassez teve em nós resultado oposto. Guardamos e pilhamos, não dizemos e competimos. Talvez por eles serem biliões, mais depressa descobriram que onde todos cooperam, todos ganham. Mas às vezes, nós portugueses, doamos o coração e a terra, que não é nossa, porque somos nós que lhe pertencemos e não ela a nós. As linhas imaginárias a que chamamos fronteiras, são tão ténues como as linhas que dividem a pureza e a maldade. Caminhamos lado a lado. Portugueses, afegãos, indianos, espanhóis… 
Agradeço a Portugal a preservação dos sonhos de 273 pessoas. Sei que não há milagres, porque as nossas fronteiras imaginárias, são pequenas, e não permitem abarcar o mundo. Mesmo assim, que não nos tornemos imunes aos sonhos dos outros, ao mundo real vivido nas trincheiras. Estamos lá todos. Só que uns estão de costas voltadas a olhar o céu azul. Outros, mais à frente, dão o corpo às balas enquanto seguram o seu instrumento. Quando caírem, seremos nós os desprotegidos e levaremos com as balas, porque nos distraímos. Mas, ao fecharmos os olhos, nós e eles, no último fôlego, lembraremos o céu.
 

21 Setembro 2022
Texto: Luzia Peixoto (@luz.peixoto)
Photo: https://www.indiatoday.in/world/story/grand-pianos-instruments-smashed-kabul-recording-studios-taliban-afghanistan-1849645-2021-09-06

Nota: Na escola de yoga e projecto que dirijo em conjunto com o meu companheiro, realizamos angariações de fundos para ajudar projectos na India. Há um ano, um concerto e angariação de fundos para ajudar o hospital referido acima, durante a época covid, fez chegar ao hospital mais de 1000€
Nota: , e este ano, esperamos juntar dinheiro para a compra de mini-éolicas para as zonas desprotegidas dos himalayas, como duas escolas que visitamos, e o orfanato do nosso querido Baba. Tentamos fazer a nossa parte. Não conseguimos apenas ficar parados.
Mais info sobre os nossos projectos contactem-me ou subscrevam a newsletter em Dharma-dhatu.com