escrever é o meu teatro mudo

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escrever é o meu teatro mudo | 24.08.2002

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Novembro

Novembro.  E as velas já se acendem nos altares e ora-se aos mortos e aos que renascem. Fala-se das brumas e do véu fino entre os mundos, transparente e permeável, que me leva a visitar a minha avó e o meu pai e pelo caminho, ver tantos pais e avós e mães de outros - alguns, esquecidos, outros ainda carpidos em rostos mortos de corpos vivos.

 

Foto de Egidio Santos

Os filhos, procuram as mães que permanecem do lado de cá do véu fino e transparente. As mães, de rostos mortos e máquina cardíaca que insiste em não se desligar, já não procuram nada a não ser o conforto da morte. Há mãos pousadas sobre os ombros desses que continuam vivos. Permanecem lá em silêncio, porque não há palavras nem expressões efusivas que salvem um corpo livre da alma. 
Na porta do véu, as mães habitam transparentes. 
Os pais com um pé no corpo e outro no lado de lá do véu. Silenciosos nessa dor que não é menor, não: É apenas uma dor amarrada, escondida, dentro de uma armadura de pedra que imortalizou a expressão antes da perda. É essa armadura de pedra que os mantêm presos ao lado de cá. 
As mães não conseguem, mas eles precisam disso, e de que essa armadura prenda a mão da mãe com tanta força que lhe quebra os ossos insensíveis à dor. 
A Mãe não quer sentir nada. A Mãe quer ir. 
O Pai, o Pai sabe que não a pode perder a ela também e luta com a sua armadura bravia por fazer a cumprir a vida e a morte segundo o destino divino. 
A mãe, já não acredita em Deus. 

As velas acendem-se nos altares e nas campas em Novembro. À noite é possível aos mais atentos sensores humanos ver a aura desse véu. E, os que a identificam, também a atravessam. Emprestam o seu corpo à terra e levam a alma a passar a fronteira e por instantes percebem que a dor e o amor e a felicidade são a língua transfronteiriça. 

Seguro a mão do meu pai e peço-lhe desculpa. Não sei porquê ao certo. Talvez por ter nascido demasiado tarde. Talvez por ter sido demasiado imatura para aprender com ele. Talvez porque como aqueloutra mãe do lado de lá, eu não queria que a morte se cumprisse, divina e fatídica. 
Vejo o seu filho choroso, em busca de colo. Tento dar-lho mas, ele não é meu, e esvai-se no meu corpo trespassando-o - e sou capaz de sentir ainda a sua carência, a sua angústia, o seu desnorte. 

O tempo é escasso neste encurtar de véu - parcas horas, como as horas da noite, se bem que não há horas do lado de lá - A dor permanece enquanto é vivida pelas mães e pais e filhos que restam de alma e corpo na terra. 

Regresso. 
Vejo aquela mãe transparente e sem forças à porta do véu e sei que ela não o vê mas sente-o. E sei que por ela as horas também não passam. As rugas congelaram há muito numa única expressão inexpressível. A única mão que se mantém encarnada é a que é segura por aquele marido-pai que luta por ela num turbilhão de sobrevivência desesperada. 

O véu torna-se compacto ao amanhecer, a mãe, recua por um instante à força da mão puxada. Volta as costas à morte só por um bocadinho. Alonga a sua alma um pouco mais na direcção da vida mas deixa a outra, do lado de lá, como uma âncora, esperando que o filho a encontre. As rugas, congeladas de um corpo já morto de máquina cardíaca operacional mantêm-se expectantes por ganhar expressão. 
As horas não passam e, no entanto, a espera é tudo o que lhe resta: 
- largar a mão e atravessar, 
dura 
a mais incapacitante eternidade. 
 
 

Luzia Peixoto
Novembro 2021
Foto: Egidio Santos (www.egidiosantos.com)