escrever é o meu teatro mudo

escrever é o meu teatro mudo
escrever é o meu teatro mudo | 24.08.2002

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Véu

 

 


À noite
às vezes,
sopra
o vento.
Às vezes,
chora
a ausencia.
Às vezes,
fecha-me os olhos
e diz-me baixinho
-dorme!

Eu,
olhos abertos
mente volante,
às vezes
choro.
E sopro
a ausência
pra longe...

Às vezes,
faço dia
no peito
e sol no umbigo
e deleito-me
nesse sabor
sem tempo
de lua cheia
em céu estrelado,
e corpos cobertos
de nuvens densas...
Às vezes…

E o riso trovejante
de uma mente em delírio
e a respiração
decrescente
de uma placidez
repentina
e acalmia
no olho da tempestade
e…

Fecho os olhos
quando
às vezes,
é dia.
E também às vezes
a brisa da aurora
me diz baixinho
-desperta!

Eu,
sono profundo
numa realidade sonâmbula
e, às vezes
acredito!
Que é dia fora do peito
e que o sol não é umbigo
mas bate nele!
Que resplandesço
por empatia
e semelhança
- Sou espelho.

De olhos abertos ou fechados,
- já não sei -
mas sei que que o céu estrelado
permanece pra lá das pálpebras
que as nuvens densas
estão para lá dos corpos
e que eu não sou corpo nem pálpebras
nem dia nem noite
e, às vezes,
realizo
a ilusão
e o véu
e o brilho
e o sonho
- e cansa isso! -
E volto para casa,
de olhos fechados
e dia no peito
e permaneço desperta
na ausência...
E o vento...
sopra...
Sempre! Sempre! 



Texto: "Véu" por @luz.peixoto (segue também no instagram) 
Photo: @egidiosantosfoto (obrigada por esta inspiração!)

Luz Peixoto 

Dezembro 2021

 

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Novembro

Novembro.  E as velas já se acendem nos altares e ora-se aos mortos e aos que renascem. Fala-se das brumas e do véu fino entre os mundos, transparente e permeável, que me leva a visitar a minha avó e o meu pai e pelo caminho, ver tantos pais e avós e mães de outros - alguns, esquecidos, outros ainda carpidos em rostos mortos de corpos vivos.

 

Foto de Egidio Santos

Os filhos, procuram as mães que permanecem do lado de cá do véu fino e transparente. As mães, de rostos mortos e máquina cardíaca que insiste em não se desligar, já não procuram nada a não ser o conforto da morte. Há mãos pousadas sobre os ombros desses que continuam vivos. Permanecem lá em silêncio, porque não há palavras nem expressões efusivas que salvem um corpo livre da alma. 
Na porta do véu, as mães habitam transparentes. 
Os pais com um pé no corpo e outro no lado de lá do véu. Silenciosos nessa dor que não é menor, não: É apenas uma dor amarrada, escondida, dentro de uma armadura de pedra que imortalizou a expressão antes da perda. É essa armadura de pedra que os mantêm presos ao lado de cá. 
As mães não conseguem, mas eles precisam disso, e de que essa armadura prenda a mão da mãe com tanta força que lhe quebra os ossos insensíveis à dor. 
A Mãe não quer sentir nada. A Mãe quer ir. 
O Pai, o Pai sabe que não a pode perder a ela também e luta com a sua armadura bravia por fazer a cumprir a vida e a morte segundo o destino divino. 
A mãe, já não acredita em Deus. 

As velas acendem-se nos altares e nas campas em Novembro. À noite é possível aos mais atentos sensores humanos ver a aura desse véu. E, os que a identificam, também a atravessam. Emprestam o seu corpo à terra e levam a alma a passar a fronteira e por instantes percebem que a dor e o amor e a felicidade são a língua transfronteiriça. 

Seguro a mão do meu pai e peço-lhe desculpa. Não sei porquê ao certo. Talvez por ter nascido demasiado tarde. Talvez por ter sido demasiado imatura para aprender com ele. Talvez porque como aqueloutra mãe do lado de lá, eu não queria que a morte se cumprisse, divina e fatídica. 
Vejo o seu filho choroso, em busca de colo. Tento dar-lho mas, ele não é meu, e esvai-se no meu corpo trespassando-o - e sou capaz de sentir ainda a sua carência, a sua angústia, o seu desnorte. 

O tempo é escasso neste encurtar de véu - parcas horas, como as horas da noite, se bem que não há horas do lado de lá - A dor permanece enquanto é vivida pelas mães e pais e filhos que restam de alma e corpo na terra. 

Regresso. 
Vejo aquela mãe transparente e sem forças à porta do véu e sei que ela não o vê mas sente-o. E sei que por ela as horas também não passam. As rugas congelaram há muito numa única expressão inexpressível. A única mão que se mantém encarnada é a que é segura por aquele marido-pai que luta por ela num turbilhão de sobrevivência desesperada. 

O véu torna-se compacto ao amanhecer, a mãe, recua por um instante à força da mão puxada. Volta as costas à morte só por um bocadinho. Alonga a sua alma um pouco mais na direcção da vida mas deixa a outra, do lado de lá, como uma âncora, esperando que o filho a encontre. As rugas, congeladas de um corpo já morto de máquina cardíaca operacional mantêm-se expectantes por ganhar expressão. 
As horas não passam e, no entanto, a espera é tudo o que lhe resta: 
- largar a mão e atravessar, 
dura 
a mais incapacitante eternidade. 
 
 

Luzia Peixoto
Novembro 2021
Foto: Egidio Santos (www.egidiosantos.com)

terça-feira, 17 de agosto de 2021


 

Partindo o coração em pedaços de areia fina
E os olhos, que comem sombras por trás do pôr do sol
luz nas estepes e nos arfares selvagens do fim do dia
Corpos unos entre fios de nuvem
A cor, num abrir de noite escura
 
 
 
Luzia Peixoto
 Agosto 2021

 

domingo, 8 de agosto de 2021

Dentro





Entro na floresta pelos poros das arvores
Ouço sem medo os silvos da seiva

Sinto aromáticas as vozes das pétalas

Seremos montanhas num mundo de correntezas
Abriremos rios nas veias da terra
Cavaremos mares nas nebulosas nascentes

Entro nas dunas pelo espaço entre os grãos
Abro em audácia oásis no peito
Sinto ardente as dores do deserto

Seremos areia numa mão de certezas 
Irrigaremos sulcos na terra argilosa
Voaremos estrelas, cairemos sementes

Entro na vida pelo olho do cosmos
Sonho sem medo as mãos junto ao peito
Sinto em segredo a bênção do novo

Seremos graça 
em forma de povo



Luz Peixoto
Agosto 2021

terça-feira, 3 de agosto de 2021


 

 

 

 

 

 

 

 

 

Que a liberdade tem piolhos e não a quero
Que a fome não a tomo e me abona 

Que a dor não a compro e me inflaciona

Que a saúde me é imposta e adoeço

Que a liberdade tem piolhos mas não tem preço

Que a fome me destrona e eu me farto

Que a dor me agonia e me alivio

Que a saúde não se compra na farmácia

Que a liberdade tem piolhos e muito coça

Que a fome dá comichão mas não me mossa

Que a dor está escondida, anestesia

Que a saúde me é tirada a cada dia

Que a liberdade tem piolhos e não me importo

Que a fome só tem lugar quando eu corto

Que a dor é um sentir tão mais profundo

Que a saúde é um direito neste mundo

Que a liberdade tem piolhos e chateia

Que a fome é na Tv não na ceia

Que a dor só me toca a carteira

Que a saúde é ferramenta derradeira

Que a liberdade que é minha e não tua

Põe-te à fome habitante de uma rua

E a dor que te consome me habitua

Que saúde é privilégio que recua

Luzia Peixoto
Junho 2021

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Fui esquecendo o azul ao ver a lua

 

Texto traduzido para espanhol e publicado em ulises.online (ulises - revista de viajes interiores)



Era Lua cheia. Sabia-o porque tinha escolhido especialmente aquele dia. Diziam, nos livros de biodinâmica, que a Lua, mediante a sua fase, influência a fisiologia no que diz respeito à toma de substâncias.  

Era na lua cheia que se potenciava a toma de medicamentos e acreditei por ilação, que a toma de qualquer substância seria potenciada. 

Estava eu ali, quarenta e cinco minutos após a ingestão de um microponto, expectante, sentado à beira dessa experiência… 

Podia dizer-me tanto como todas as outras que vivi mas por qualquer motivo dizia-me mais… Não é todos os dias que reconheço os teoremas quânticos nas fontes de luz que observo… Nem é todos os dias que um ouvido aguçado prescruta o ar e me enrijece os tímpanos fazendo-os soar em melodias solenes. 

Tomei talvez, uma dose alta demais… 

Talvez perca agora o meu chão e não me reconheça nessa subida vertiginosa onde me espalho por completo,

como se o chão fosse no céu e as nuvens, os recados que os homens trazem aos anjos. 

Sinto-me a arfar… ah ah ah…

    - são síncopes descompassadas que me suam as fontes…

Olho a cidade do cimo da colina.

Sei que aquela colina sempre foi palco de momentos nobres:

Lembro-me do primeiro beijo enquanto olhava em  abraço a estrelas 

e dos neons que cortavam a silhueta citadina quando à fogueira fumamos o primeiro charro

Lembro-me, de salvar o Pedro da sua tentativa patética de suicídio quando Jessica, o seu primeiro e ridículo grande amor se mudou para o Oeste.

Agora, afastava-me do miradouro ao sentir a dose profunda que me envenenava e criava dimensões de real até aí despercebidas. 

O coração estava ainda mais forte e a respiração suada tornava-se ensurdecedora aos meus ouvidos sensíveis. 

                          - Eu era agora um GIGANTE sensorial! -


As tonturas e os pensamentos vertiginosos fizeram-me aos poucos e com cautela colocar primeiro uma mão sobre a pedra à minha direita, um joelho no chão, a outra mão… Senti o impacto do cóccix. Foi forte. Sinto que foi demasiado forte pela sonoridade criada e a onda de impacto gerada. No entanto, não senti nada… Nada… O meu corpo... olhei-o com atenção e vi-o desprender-se, como se a vida não dependesse daquele invólucro. 

    - Acalma-te Joel… Acalma-te…-

Observava o meu corpo a deitar-se na relva orvalhada. Percebi que várias horas teriam passado pela quantidade de orvalho já acumulada nas esguias folhas lanceoladas. Sabia-as lá ao afagá-las com as mãos. Contudo, não as sentia… Era tudo uma questão de raciocínio lógico, que não reconhecia como meu… 

Por momentos, senti-me morrer… 

Observava-me agora, ali, deitado, a arfar, as pupilas dilatadas, um ar de pânico abstracto estampado no meu rosto e as gotas de suor que se confundiam com as gotas de orvalho…

    - Acalma-te Joel! -

O coração disparava e conseguia ouvir o fluxo de sangue que me subia pela carótida. Conseguia vê-la pulsar. Os meus olhos fixaram-se no azul profundo da noite. A visão aumentada e exacerbada pela dose excessiva de LSD abria túneis quânticos que me aproximavam da linguagem de Saturno. 

     - Como assim? É tão longe Saturno!... -

Ouvia ainda as vozes emaranhadas dos pensamentos dos moradores da cidade. Logo abaixo da colina…

Sabia-os bem… Alguns dormiam e conseguia perceber os seus sonhos, outros, faziam amor e conseguia ouvir-lhes com clareza os gemidos do prazer de um corpo a fundir-se com o outro. 

Também eu me fundia… Era eu naquele momento a cópula com o mundo. Todo o Universo se servia de mim agora em orgasmo intenso. Subitamente, aquele azul profundo fez-me sentir a pequena morte em simultâneo com o casal por cima do restaurante chinês no cruzamento da 5ª com a 27ª.  

Ouvi o nosso coração suspirar de alívio. Senti o suor retrair-se para dentro dos poros e a boca a quebrar a patine criada pela saliva seca. O azul profundo abraçava-me. Era eu agora, umbilicalmente ligado ao centro galático. Tudo era um momento encasulado em paz profunda…. A visão, aos poucos criava nitidez nas manchas borratadas das estrelas.  Reconheci a Cassiopeia, Andromeda, as três Marias… Pelo canto da visão periférica a luz chamava-me, forte, intensa... Virei, ainda sem consentimento, a pesada cabeça que supostamente teria. Resplandescente, a lua brilhava. Via perfeitamente cada uma das suas crateras e reconhecia o som das ondas eletromagnéticas que percorriam a sua superfície como uma música eletrónica futurista, que enviava uma mensagem muito clara para mim. "És tu Joel. És tu aqui e nesse sonho profundo.” 

A epifania de um contacto directo com a fonte fez-me ser beatitude em forma de sorriso. A Lua, poupou-me à morte naquele momento. De olhar atento na textura das suas crateras, o seu alvor cálido aos poucos aquietou a intensa viagem enteogénica que experienciava. Na fluidez do seu esplendor, fui esquecendo o Joel, e com ele o azul. 

Num delírio fora do tempo senti-me não ser, por toda a  eternidade, reconhecendo-a num pequeníssimo momento.

A luz da Lua começou a cegar-me. Já não conseguia vê-la ofuscado pela intensidade visual sobre os meus olhos. Os sons, até aí límpidos e lúcidos transformaram-se no burburinho agitado das viagens percorridas pelos transportes públicos sobre os viadutos e as buzinas apressadas dos serviços expresso. A cidade amanhecia assim. - Quantas horas teriam passado? -

O corpo, sentia-o agora desconfortável, enregelado, molhado... O prazer antes sentido pelo toque nos vértices da grama não passavam agora de uma memória irreproduzível. Doía-me o cóccix. Ainda deitado, com as mãos em riste tapando a luz intensa, percebi que o azul se tinha tornado ténue, e que a aurora deveria ter sido há já bastante tempo pela posição vertical do sol. Com esforço, levantei-me. A cidade parecia-me igual, no entanto, eu estava diferente. Caminhei colina abaixo e reparei nas marcas deixadas nas árvores pelos vários casais que ali passaram. Na vigésima primeira, a contar do ponto mais alto da colina, estava eu cravado entre dois pedaços de casca grossa. Nesse dia de solstício, tinha decidido que a vida pertencer-me-ia sempre por completo. 

Cambaleante e com dores desci o caminho de terra. A lua permanecia no centro das minhas pupilas mas era o sol que me aquecia a nuca. O azul, ficou esquecido, latente, numa parte nunca antes explorada de mim. - Seria eu ainda? -

     - Joel... Sou Joel! Mas sou mais agora!


 A vida, pertencia-me por completo. 

 

 

Luzia Peixoto



sexta-feira, 23 de julho de 2021


 Tenho que te dizer isto… 

Somos muito mais, sabes?
Maiores que o corpo 
E os pés que o sustentam.

Podia ser eu e tu e nós, na vida
E fazê-la vivendo sem medo
Mas com receio

Podíamos ser passageiros
Num mesmo comboio 
Um mesmo destino
Sairmos num mesmo apeadeiro 
ou estação principal
E os olhares não se cruzam
As palavras não se trocam
Corações não se tocam…

Podias viver na porta em frente
E os turnos fazerem-nos 
imperfeitos vizinhos
Perfeitos desconhecidos
Trocando a correspondência enganada 
Do esquerdo para o direito
De um carteiro desatento às vidas

Podíamos abrir os olhos
Todos os dias
E sermos levados lado a lado no trânsito
Sentidos contrários
Numa fila quieta e abstracta
Desencontrados em vermelhos desfasados

tenho que te dizer isto, sabes? 
A vida
Não tem relação com trânsito
Escadas comuns num qualquer condomínio
Nem viagens férreas em linhas de tempo

Somos maiores que o corpo!
Mãos dadas que não se tocam
Olhares fixos, que não se cruzam
Caminhantes lado a lado, 
em estradas invisíveis
Une-nos o infinito
E perdemo-nos nele 
E rimo-nos quando 
Em qualquer cruzamento de galáxias 
Nos reconhecemos

Irmãos sem progénese
Amigos sem história
Deuses sem reino
Reis sem castelos

Somos maiores que o corpo 
E sabes? 
Somos tão ínfimas partículas
Da mesma seiva estelar
Que ficamos indiferentes
Aos desencontros mundanos 
De vidas intermitentes

No fundo
Sabemos
Que as mãos, 
mesmo que não se toquem
Estão sempre entrelaçadas.
 
Luz Peixoto
Julho 2021

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Eu, perdido

 

Eu, perdido



Depois de 25 anos, depois de esmiuçar a vida e saltar de prazer em prazer nela. Depois de chorar as dores dos corações despedaçados. Depois de sentir amor ou paixão ou tesão pelas mulheres todas que conheço. Sim, porque todas são maravilhosas. Depois de tudo isso, disfarçada, de olhos azuis, cabelos lisos e sorriso selvagem, apaixonei-me sem retorno pela Liberdade. 

Vivi com ela as maiores e mais intensas aventuras. Corri nu pela floresta, bebi água dos ribeiros por baixo das mais arrojadas cascatas. Eu de boca aberta, ela ao meu lado, seios rijos e desnudados, molhados e tensos, boca aberta e olhar no céu. E a chuva torrencial que nos caía em cima e nos amachucava a pele. 

Comi gelados no inverno e bebi chá quente no verão. Passeei de mãos dadas, descalço, no asfalto da avenida central e fugimos da polícia quando fumamos aquele charro mesmo em frente à esquadra. Apaixonei-me por ela porque tinha que ser. Porque era óbvio e evidente que a Liberdade sabia, exactamente o que me faltava. Eu, que até ali era um desconsolado rapaz de visão toldada e pensamentos vagos. Eu que até ali era um pedinte de afectos e carências e às vezes até de respostas às perguntas que nem sequer conseguia proferir porque, de algum modo, não conseguia conceber. Eu que, em dias de tempestade me fechava em casa e quando não podia, resmungava o dia todo porque imagine-se, chovia! 

Eu que bebia para esquecer aquilo de que não tenho memória. Eu que me queixava da minha mãe que trabalhava e pouca atenção me dava, mesmo nunca tendo faltado a uma audição, apresentação, nem sequer ao dia em que me formei mestre. Eu que sempre desprezei o sentimento. E, de repente, uma mão que me agarra, um salto no escuro, a adrenalina de fazer o que nunca ousara. Uns olhos azuis que me fitam e me deixam sem jeito de tamanha força que emanam. 

Não sei se foi um sonho. Ainda hoje não sei. Vívido sim, real sim, mas talvez um sonho. Apaixonei-me loucamente, intensamente e de tão intensamente amar a Liberdade tornei-me prisioneiro dela. A Liberdade não queria prisioneiros, ela repudiava apego, ela voava sem gaiola. Eu, queria ao princípio voar com ela. Mas ela queria sempre voar mais longe e mais longe e eu, aos poucos quis pôr-lhe uma trela. Ela, roía as trelas e fugia mais longe. Eu desesperado porque a queria comigo sempre ao meu lado, tornei-me gaiola. Ela, fugiu uma e outra vez e eu tornei uma e outra vez a gaiola reforçada. Aos poucos, a prisão era indestrutível e eu feliz porque tinha a Liberdade para mim.

Aos poucos a Liberdade definhou.

Deixei de correr à chuva, de voar mais alto de estender o nariz ao último raio de sol e ela, aninhada, muda, silenciada. Eu, desesperado. O que poderia estar a correr mal? O que me escondia ela? Porque não me amava? Deixou de sorrir, falar, olhar-me. Os seus olhos azuis tornaram-se cinzentos, a sua pele sem brilho e eu cada vez mais desesperado. Tentava acordá-la daquele sono profundo em que entrara, chocando-a, abalando-a. O álcool e as drogas entorpeciam-me e eu tentava-a com elas mas a Liberdade recusava o vício. Os berros e insultos faziam-me hipoteticamente maior mas o silêncio era a sua forma de guerra. Não me obedecia… Não me respondia… Não me olhava… Não se compadecia… 

Um dia, ela, doente, abatida, e eu, doente, abatido. Em pranto. À frente dela. Ela, compassiva, passa-me a mão pelo rosto. Segura-me as lágrimas. Segura-me as duas mãos. Os seus olhos cinzentos dilatam as pupilas. Os seus lábios secos estalam às primeiras palavras proferidas.

Disse-me, que eu não sabia ser livre. Disse-me, que eu era o prisioneiro da sua própria prisão. Ela, ficara apenas pela liberdade de escolher libertar-me. Agora, tarde demais para mim e não para ela, sairia de mansinho. Tal qual como tinha chegado. 

A gaiola não teve força para o seu sussurro. Cedeu em escombros por cima de mim. Apaixonei-me pela Liberdade e não consegui vivê-la! Troquei-a pelo desespero da ganância. Fiz dela a sua antítese. Fiz de mim, a sua condenação. 

Apaixonei-me pela Liberdade e hoje, longe dela, percebo que não a quero. Não a quero porque me desgoverna. Não a quero porque me assoberba. Não a quero porque me deixa inseguro.

Fico inseguro na Liberdade.

Fico inseguro porque não seguro nada!

Não sei fluir sobre as coisas, a vida, o amor. Não sei fluir, ponto.

Não sei ser um rio que abre caminhos novos nem o vento que rodopia sem rumo. Não sei beijar sem querer para mim nem sei amar sem sentimento de pertença. 

 

Casei com a Constância e estou feliz. 

 

Não sei o que é caminhar descalço, não sei dormir em cima de uma árvore, nem viajar a meio da noite durante 300 quilómetros à procura do ponto mais próximo da Lua cheia atravessando fronteiras para chegar a finisterra.

Percebo que, fraco como sou, me faz bem a rotina de uma vida banal. Gosto das coisas simples. Mas não demasiado simples. Um banho numa cascata é demasiado simples. Estar nu num solstício é demasiado simples. Eu quero antes a simplicidade de ser banal. Não quero risos sinceros e gargalhadas profundas. Quero antes aquela seriedade digna de um casal, a severidade digna de um homem, a reserva digna de um marido. Constância não me acrescenta nada mas alimenta tudo o que eu já tenho na medida do acertado. 

A Liberdade, deixou-me no abismo do desconforto. Apaixonei-me por ela e quando a tive, ceguei-me. Agora, com a visão recuperada, vejo-a passar da janela do quarto:

Ela, cabelos ao vento, vestes largas, olhos azul luminoso, sorriso resplandescente. Eu, invejo-a na medida do espaço imaginário que me habita e que nunca quererei como real. Chove lá fora e ela caminha descalça, boca aberta a olhar o céu. Tento perceber os seus seios nas vestes brancas e reconheço que a desejo ainda. Que esse desejo seja platonicamente transmutado pela distância da janela e das gotas que nela caem distorcendo ainda mais essa ilusão, anseio em pensamento.

Constância, espreita por cima do meu ombro e vê a Liberdade passar lá em baixo. Sem medo, em silêncio sorri placidamente, coloca os seus braços à minha volta e nesse instante sussurra-me ao ouvido - O jantar está servido. 

Pensei em beijá-la com a força e entusiasmo com que a Liberdade me beijava mas, deixei a janela, e sentei-me à mesa, como em qualquer outro anoitecer. 

 

21 de junho, solstício de verão 2021

Luz